terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Nádia Lapa: Feminismo pra quê?

feminismo
A representação da mulher na mídia e em produtos
Em comerciais de televisão, produtos e marcas, a mulher é tratada como brinde, imbecil ou hipersexualizada

Todo mundo já sabe: em comerciais de cerveja, estará sempre muito calor e as mulheres vestirão um biquini fio dental nos corpos belíssimos. Corpos esses sem língua, diga-se, porque elas nunca falam nada. Quer vender detergente, sabão em pó ou qualquer outro produto de limpeza? Direcione as propagandas paras mulheres, porque elas ainda não saíram da cozinha.

Vemos isso o tempo todo, tomamos como verdade absoluta, e nem ligamos muito para a representação da mulher nos comerciais. Fúteis, vazias, competitivas com outras mulheres, rainhas do lar, vaidosas em nível tóxico. “É só propaganda”, diriam alguns. Alguns muitos. Outros vários diriam que quem vê problema nessa má representação da mulher está é “falta do que fazer”. “Vai lavar uma louça”, os engraçados de Twitter responderiam. Na verdade, o sistema é esse, feroz, que se retroalimenta dos pensamentos da sociedade. As propagandas são ruins porque o público alvo é ruim, ou é o contrário? Difícil dizer.

Nos Estados Unidos há uma iniciativa chamada The Representation Project, que cuida justamente de analisar como a mídia mostra as mulheres (veja vídeo ao final do post). Aqui no Brasil não temos nada parecido, mas grupos feministas online costumam questionar as empresas quanto aos seus anúncios sexistas e muitas, muitas vezes misóginos.

Foi o que aconteceu durante a Copa das Confederações. A Ariel, marca de sabão para lavar roupas, lançou uma propaganda no Facebook com quadrinhos mostrando como a mulher também gosta de futebol. Seria ótimo quebrar o estereótipo de que só homem gosta do esporte, enquanto as mulheres são histéricas que só gritam nas partidas da seleção brasileira e não sabem nem o que é um escanteio, mas a marca, pertencente à Procter & Gamble, reiterou na série de quadrinhos como a mulher vê futebol por causa das pernas dos jogadores e que “torce”. Torce roupa. Porque mulher esquenta barriga no fogão e esfria no tanque.



Falei com a assessoria de imprensa sobre os quadrinhos, e recebi a seguinte resposta: “a P&G informa que em maio desse ano postou na fanpage de Ariel um pedido de desculpas pela tirinha criada para a Copa das Confederações. Vale ressaltar que a empresa valoriza a diversidade, assim como o papel de importância da mulher em nossa sociedade. A empresa informa ainda que levará em conta todos os comentários e considerações que foram postados na época em sua fanpage para as próximas campanhas da marca.”.

Eles, pelo menos, assumiram que foi uma bola fora (e sim, nós sabemos quando é lateral ou escanteio nesses casos). A cerveja Crystal, do Grupo Petrópolis, infelizmente não fez o mesmo. Tentou mais ou menos fugir da velha fórmula mulheres de biquini na praia (tem algumas à beira da piscina, ora pois!), e colocou uma mulher… como brinde!

Não, Crystal, apenas não. Mulher nunca é um brinde. Ou não deveria ser. A resposta da marca foi: “O Grupo Petrópolis sempre respeitou as mulheres e, em nenhum momento, teve a intenção de tratá-la como objeto. A propaganda trabalha com humor e respeito.”. Interessante observar o uso da palavra brinde, que não só é um objeto, como é um objeto que a pessoa ganha, sem maior esforço. A saída escolhida pela Petrópolis foi dizer que isso, comparar uma mulher a algo que se ganha, é piadinha. Humor é seeeeempre a desculpa para qualquer erro.

Quer ver como é sempre tudo muito, muito engraçado? A resposta da NET ao meu questionamento sobre o comercial abaixo parece até ter sido escrita pela assessoria da Crystal: “As campanhas da NET se caracterizam pela irreverência e bom humor. A empresa busca trazer novidades e frescor em sua forma de se comunicar e para isso se utiliza de temas ou situações que auxiliem neste fim. Especificamente no filme citado, seguimos com a mesma intenção e em momento algum houve o intuito de denegrir a imagem da mulher ou imprimir qualquer outra conotação, apenas utilizou-se de um contexto usado no dia a dia das pessoas e em tom de brincadeira.”.

Que coisa engraçada tratar a mulher como 1) desesperada por um príncipe; 2) interesseira a ponto de trocar um príncipe por um cartão de crédito. Hum… não.

Outra tática utilizada pelas empresas é dizer que algo – produto ou comercial – simplesmente caiu no colo delas. É preciso apontar que antes de ir ao ar ou aparecer nas araras das lojas, o produto ou propaganda passa por uma série de pessoas. Tudo está sujeito à criação, aprovação, produção. Há muito tempo e incontáveis oportunidades para alguém nesse ciclo simplesmente dizer “ei, isso aqui está errado, não vamos colocar no ar/colocar à venda”.

No entanto, se alguém tem tal iniciativa nesse processo, certamente sua voz não está sendo ouvida. Enquanto isso, as empresas lavam as mãos a respeito da responsabilidade acerca da equidade de gêneros. A Luigi Bertolli está vendendo, neste momento, uma camiseta que diz:

Look like a girl

Act like a lady

Think like a man

Work like a boss



Pareça uma garota, se comporte como uma dama, pense como um homem, trabalhe como chefe. Pense como um homem? O que há de tão diferente no pensamento de um homem para que eu, mulher, deseje ser como ele? Não está bom ser do jeito que eu sou e pensar do meu jeito? Ou homens são mais inteligentes?

“A camiseta mencionada não tem qualquer objetivo machista, feminista ou político. Trata-se apenas de mais uma estampa de moda que combina frases irreverentes com as cores da estação. Sendo assim, a Luigi Bertolli não teve intensão ou pretensão de sugerir nenhum tipo de comportamento.”

Ah, está tudo bem agora, então, ufa! Que bom que uma marca denunciada por trabalho escravo e que não faz roupa para gorda não está me dizendo como viver. Sinto um grande alívio agora.

É evidente que isso não é verdade. Uma marca vende não só um produto, tangível, mas também um estilo de vida. O consumidor, então, compra algo de acordo com o que lhe é vendido. Não é só a camiseta ou o sabão em pó. Quando se trata de autoestima, então, ataca-se um ponto fraco das mulheres. Até supermodelos dizem que às vezes não se sentem tudo isso, imagine uma mulher comum, que trabalha, vai à faculdade, cuida dos filhos, lava louça, entra em fila de banco.

As mensagens que ela recebe são de que ela precisa ser bonita, atraente, sexy, ter a aparência de uma garota e comportamento de uma dama. Ela precisa. É isso que é cobrado o tempo todo dela. E, se não der pra ser tudo isso por si mesma, só resta competir com as outras mulheres, tratando-as como café-com-leite.

(A assessoria da Eudora ainda não se pronunciou a respeito do comercial.)

As mulheres precisam se unir e se empoderar, juntas, sem essa coisa de competir entre si. É triste ver uma empresa voltada às mulheres com esse tipo de discurso. No fim, se você não tiver uma aparência de capuccino e for um mero café-com-leite, você não será a escolhida pelo gatinho da balada. Não foi por causa dele que você saiu de casa?



Viu? Amigos de verdade não deixam os amigos saírem com meninas feias, diz a camiseta da Hering. Melhor ser um capuccino, garota, se não você está perdida. Segundo a assessoria da empresa, “em relação ao caso das estampas questionadas por consumidores, a Cia. Hering esclarece que já tomou as providências necessárias para evitar estes temas em seus produtos futuramente. A empresa reforça ainda que a estampa não condiz com os princípios e os valores defendidos pela marca”.

Antes de eu questioná-los acerca da estampa, consumidores já o tinham feito por meio das redes sociais. Eles disseram que tirariam as camisetas das araras, mas dias depois as lojas continuavam vendendo. Sabem o motivo? Porque não importa. O sistema todo é assim. Este post poderia ser infinito, porque todos os dias nos deparamos com a péssima representação das mulheres na mídia.

O problema é que acreditamos nisso tudo. Mais do que comprar o sabão, a camiseta ou a maquiagem, nós compramos a ideia. E vivemos com ela, repetindo-a, sentindo-a na pele. Você é café-com-leite, você não é bonita o suficiente, você não será amada, você está gorda demais. E compre isso aqui para diminuir o buraco que eu, empresa, criei em você.
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Como a mídia errou ao representar as mulheres em 2013 (em inglês). Vídeo do The Representation Project.

Por Nádia Lapa

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